Porque é que as crianças com hiperatividade tomam anfetaminas?
Mike MunayCompartilhar
Recentemente, vi um vídeo no Instagram de um humorista a fazer um monólogo sobre médicos.
Riu-se da ideia de que os médicos prescrevem anfetaminas a crianças hiperativas. Que se uma criança já não consegue estar parada, a solução médica é dar-lhe um medicamento estimulante.
E, claro, a piada era óbvia: "O que é isto, deitar achas para a fogueira?"
Eu ri-me. Porque a piada estava bem feita e o humorista tinha humor.
Mas quando parei de rir, percebi que muitas pessoas devem ter exatamente a mesma dúvida.
E não é uma pergunta parva. Durante décadas, mesmo na medicina, este mecanismo não era bem compreendido.
Se as anfetaminas são drogas estimulantes, que aumentam o estado de alerta, a energia e a atividade cerebral, como é possível que sejam utilizadas para tratar a hiperatividade? Em adultos? Em crianças?
A intuição diz-nos que isso deveria piorar o problema, e não melhorá-lo. Que algo não está bem. Que existe uma contradição médica clássica.
Por detrás do que parece um disparate, existe uma explicação sólida e coerente, profundamente enraizada na neurociência. Esta explicação envolve a dopamina, os circuitos cerebrais, a regulação da atenção e o facto de a hiperatividade não ser exatamente o que parece ser.
Portanto, não, não é loucura médica nem uma piada de mau gosto. É ciência.
O que queremos realmente dizer com hiperatividade?
Quando falamos de hiperatividade, muitas vezes imaginamos alguém que se mexe muito, que não consegue estar parado, que parece ter demasiada energia. Mas, do ponto de vista clínico e neurobiológico, esta definição é profundamente enganadora.
A hiperatividade não é um excesso de energia, mas sim um problema de regulação. Envolve regular a atenção, os impulsos, o foco mental e o comportamento. Não se trata de o cérebro funcionar demasiado depressa, mas sim de ter dificuldade em manter o controlo sobre a alocação dos seus recursos.
É por isso que muitas pessoas com PHDA (Perturbação de Hiperatividade com Défice de Atenção) não são hiperativas o tempo todo, ou em todas as situações. Podem passar horas concentradas em algo que as estimula, e ainda assim serem incapazes de manter a atenção em tarefas simples ou pouco motivadoras. O problema não é a capacidade, mas sim a auto-regulação.
Este é o mecanismo predominante em muitos casos, mas não explica toda a variabilidade da PHDA.
A hiperatividade resulta de uma alteração nos circuitos cerebrais responsáveis pela autorregulação, particularmente no córtex pré-frontal. Nestes circuitos, existe uma sinalização dopaminérgica e noradrenérgica insuficiente, o que reduz a capacidade do cérebro de manter a atenção, inibir os impulsos e priorizar estímulos relevantes. Como consequência, o sistema nervoso entra num estado de instabilidade funcional: o cérebro muda constantemente o foco e procura estímulos externos para compensar essa falta de ativação interna.
A hiperatividade não é um excesso de energia, mas o resultado visível de um sistema de controlo que está a funcionar abaixo do seu limiar ideal.
O cérebro e a autorregulação da atenção
Para compreender a hiperatividade, precisamos de ir além do comportamento visível e observar o cérebro. Mais concretamente, as redes responsáveis por decidir o que merece atenção e o que não merece, o que impulsiona uma ação e o que a inibe.
É aqui que entra em ação o córtex pré-frontal, uma região fundamental para:
- Plano
- Inibir impulsos
- Mantenha a atenção
- Regular o comportamento de acordo com o contexto
Quando estes circuitos funcionam corretamente, o cérebro consegue escolher com relativa facilidade o que fazer e o que ignorar. Quando apresentam um mau funcionamento, o cérebro salta de um estímulo para outro, não porque queira, mas porque não consegue estabilizar o foco.
A hiperatividade começa aqui a ser entendida: como uma dificuldade em manter o controlo executivo, e não como um movimento excessivo.
O papel da dopamina (e o grande mal-entendido)
Neste ponto, surge uma palavra muito famosa e bastante incompreendida: dopamina.
Durante anos, a dopamina foi simplificada como a hormona do prazer. Esta ideia é conveniente, mas falsa. A dopamina não é prazer. É um sinal. Um sinal de relevância, de motivação, de "isto interessa, presta atenção".
No cérebro de uma pessoa com PHDA, certas áreas-chave, especialmente as envolvidas nos circuitos de controlo e atenção, apresentam uma atividade dopaminérgica reduzida. Não se trata de uma falta de dopamina em todo o cérebro, mas sim de esta não chegar aos seus destinos de forma eficaz.
Embora a dopamina seja central, a PHDA envolve a interação de múltiplos sistemas (dopamina, norepinefrina e redes frontoestriatais), o que explica a sua enorme variabilidade clínica.
O resultado é um cérebro que tem dificuldade em:
- Manter a atenção em tarefas pouco estimulantes
- Sentir motivação constante
- Regular os impulsos
E aqui surge uma consequência importante: quando os níveis basais de dopamina são baixos, o cérebro procura constantemente estímulos para compensar.
O circuito de recompensa e a hiperatividade como estratégia
O circuito de recompensa não é um sistema de prazer, mas sim um sistema de aprendizagem e motivação. Informa o cérebro do que merece esforço, atenção e repetição.
Quando este circuito funciona de forma subóptima, o cérebro entra num modo muito específico: uma procura constante de estímulos. Movimento, interrupções, mudanças de foco, impulsividade. Não como uma falha moral, mas como uma estratégia inconsciente.
Neste contexto, a hiperatividade passa a ser vista de forma diferente: não como um sintoma primário, mas como uma resposta adaptativa, não no sentido de benéfica, mas como uma resposta compensatória imperfeita a um sistema regulatório deficiente.
O cérebro mexe-se mais, muda mais, procura mais… porque precisa de elevar o seu nível de ativação para funcionar minimamente bem. A hiperatividade não é o problema original: é a tentativa de a compensar.
O que são realmente as anfetaminas (para além do estigma)?
A palavra "anfetamina" tem um grande peso cultural. Está associada ao abuso, às drogas recreativas e à estimulação excessiva. Mas, em farmacologia, as coisas são menos emocionais e mais precisas.
Em doses terapêuticas e em contextos médicos, as anfetaminas:
- Aumentam a disponibilidade de dopamina e norepinefrina.
- Melhoram a sinalização em circuitos de atendimento essenciais.
- Não aceleram o cérebro indiscriminadamente.
Tal como qualquer droga que atua no cérebro, a sua utilização requer um diagnóstico rigoroso, doses ajustadas e acompanhamento médico.
Não aumentam o nervosismo de alguém por defeito. Modulam circuitos específicos que estavam a funcionar abaixo do seu nível ideal.
Chamar a estas substâncias simplesmente estimulantes é tecnicamente correto, mas clinicamente incompleto.
A nível químico, a anfetamina é uma molécula pequena e lipofílica, estruturalmente semelhante às catecolaminas endógenas, especialmente a dopamina e a norepinefrina. Esta semelhança não é acidental: é precisamente o que lhe permite interagir com os mesmos sistemas neuronais.
Uma vez no organismo, a anfetamina atravessa facilmente a barreira hematoencefálica e atua principalmente nos neurónios dopaminérgicos e noradrenérgicos. Não "ativa tudo", mas interfere de forma bastante específica na forma como estes neurónios gerem os seus neurotransmissores.
Os neurónios dopaminérgicos são aqueles que produzem e libertam dopamina. Estão especialmente envolvidos na motivação, na atenção sustentada e na capacidade de decidir quais os estímulos que merecem foco e esforço.
Os neurónios noradrenérgicos, por outro lado, regulam o estado de alerta, a vigilância e a capacidade de resposta adaptativa ao meio ambiente. Não geram hiperatividade por si só; em vez disso, ajustam o "volume" global do sistema nervoso.
O principal mecanismo de ação da dopamina inclui três efeitos principais:
- Entra no neurónio através dos transportadores de dopamina (DAT) e noradrenalina (NET).
- Desloca a dopamina armazenada nas vesículas sinápticas para o citosol.
- Isto reverte parcialmente a função dos transportadores, favorecendo a libertação de dopamina e noradrenalina no espaço sináptico.
O resultado é um aumento controlado destes neurotransmissores precisamente nos circuitos onde estavam a funcionar abaixo do seu nível ideal.
Esta distinção é importante: a anfetamina não "cria" nova dopamina, nem estimula indiscriminadamente todas as áreas do cérebro. Redistribui e amplifica um sinal que já existia, mas que era insuficiente para manter a atenção, a motivação e o controlo executivo.
Ao nível das redes neuronais, isto traduz-se numa melhor relação sinal-ruído: menos interferência, menos saltos caóticos entre estímulos e uma maior capacidade de manter o foco estável. Não se trata de um cérebro mais rápido, mas sim de um cérebro mais bem sincronizado.
Portanto, num cérebro sem défices regulatórios, doses elevadas ou usos não medicinais podem produzir sobre-estimulação. Mas num cérebro com PHDA, onde estes circuitos partem de uma base hipoativa, o efeito é exatamente o oposto: normalização funcional.
A diferença não está na molécula, mas sim no contexto neurobiológico em que atua.
O ponto principal: porque é que um estimulante pode reduzir a hiperatividade
É aqui que cai a ficha.
Se a hiperatividade fosse simplesmente um excesso de energia, um estimulante iria agravá-la. Mas não é. É consequência de uma deficiência funcional nos circuitos regulatórios.
Quando uma droga como a anfetamina:
- Aumenta a dopamina onde ela está em falta.
- Melhora o sinal no córtex pré-frontal
- Isto estabiliza o circuito de recompensa.
…o cérebro já não precisa de compensar.
- A procura constante de estímulos diminui
- A impulsividade é reduzida.
- A atenção torna-se mais estável.
Não porque o cérebro esteja "mais dopado", mas porque finalmente possui os recursos neuroquímicos necessários para se auto-regular.
A hiperatividade não aumenta. Desaparece porque deixa de ser necessária.
Isto não significa que toda a inquietação seja PHDA ou que toda a criança irrequieta deva ser medicada.
A ideia-chave final
O tratamento com estimulantes para a PHDA não é uma contradição médica. É a consequência lógica de compreender que:
- O problema não é a ativação excessiva.
- O problema é a falta de regulamentação.
- E a dopamina desempenha um papel central nesta regulação.
O que de fora parece ser deitar achas para a fogueira, de dentro é como desligar um motor que estava a trabalhar de forma irregular.
Isto não implica que todo o comportamento irrequieto deva ser tratado com medicamentos, nem faz dos estimulantes uma ferramenta universal para a melhoria. Trata-se meramente de uma explicação técnica do caso concreto em que a hiperatividade é tratada com anfetamina.
Não é magia, paradoxo ou contradição. É neurociência, compreendida corretamente.